Uma carta sobre escrever cartas
De volta à escrivaninha de um jeito bem mais literal do que você imagina
Quando eu era adolescente, escrevia cartas para as amigas da escola com tanto afinco e velocidade que elas nunca conseguiam escrever respostas na mesma proporção. Eu não me importava. Amava o contato da caneta com o papel, adorava escolher cada palavra e relembrar nossas histórias para narrá-las à minha maneira, me empolgava ao entregar três ou quatro cartas e receber algumas de volta. Escrevia com canetas coloridas nos papéis de carta que herdei da tia Dani e nas folhas de fichário decoradas que trocava com as amigas. Fechava cada bilhete com dobraduras das mais mirabolantes e escolhia um adesivo com todo o cuidado do mundo para selar o envelope. Encontrei no “caderno de gerações”, que criei em 2005, para um trabalho de Língua Portuguesa, a prova cabal do quanto escrever cartas fazia parte do meu dia a dia.

Quando finalmente decidia que as fórmulas da aula de Física me matariam de tédio e frustração, eu preenchia as folhas finais do caderno com cartas (e com poemas, contos, fragmentos). As meninas da minha sala foram as primeiras leitoras que tive fora da família e todas admiravam o quanto eu escrevia (a quantidade, claro, mas também a qualidade). Depois dos meus avós, dos meus pais e da minha irmã, as amigas do Colégio Auxiliadora foram as primeiras a dizer “você já é escritora-poeta-artista, um dia vou comprar um livro seu”. Bom, elas e a professora Cristiane, que pediu para a gente produzir o caderninho e deixou um recado lindo quando terminou de ler o meu.

Até hoje, eu guardo todas as cartas recebidas e sinto a mente se encher de lembranças quando me pego visitando o lugar onde elas moram: a caixa do meu primeiro All Star. É como segurar aqueles anos nas mãos, como se eu fosse capaz de tocar o tempo que passou. Eu não escrevia diários naquela época e só contava sobre a rotina no pouco espaço dos primeiros dias de uma agenda, que logo seria abandonada, então é como se as cartas desvendassem minha adolescência através das palavras de pessoas com quem não mantenho mais o mesmo contato, mas que encontrava todos os dias e amava verdadeiramente.
Aliás, se contassem para a tary de 15 anos que, aos 33, ela só seria próxima de poucas daquelas meninas, ela protestaria, custaria a acreditar. Ela nem desconfiava que a vida adulta acontece assim mesmo, não estava preparada para o sofrimento de aprender que alguns amigos vêm e vão, às vezes por culpa sua ou deles, às vezes por culpa de ninguém. Para falar a verdade, ela ainda sofre, ainda tem dificuldade para lidar com a angústia de afastamentos inesperados.
A passagem do tempo e suas consequências assustam, mas também intrigam e até são capazes de fazer rir. É engraçado desdobrar cartas antigas e não saber dobrar de volta. Olho para as minhas mãos de hoje e lembro do modo como elas faziam aquilo com habilidade, praticamente de forma automática. Percebo como, naquela época (sou de 91, e você?), a gente abusava de um internetês repleto de abreviações e misturado com gírias cafoninhas que achávamos o máximo, como “te dollu” (te adoro), “fófis” (fofo), “xau” (tchau) e “miguxa” (por falar em miguxa, ainda bem que o miga permaneceu, eu gosto do miga e prometo lutar para mantê-lo).
Era a língua mais natural de todas pra gente, um idioma nascido nos nossos refúgios, o MSN e o Orkut, dotado da característica mais importante de todas: era totalmente nosso, uma linguagem particular e praticamente indecifrável para adultos enxeridos que, por ventura, colocassem as mãos nas nossas cartas. É divertido - e um pouco triste - que eu seja agora uma dessas adultas e tenha um pouco de dificuldade para decifrar meu idioma do passado. Talvez eu deva reler as cartas mais vezes para recuperar a fluência. Pelo menos conto com a sorte de ter uma lista de gírias de 2005, escritas de próprio punho, no tal caderninho de gerações:

Comecei esta carta para compartilhar que uma das minhas metas para este ano é justamente voltar a escrever para pessoas especiais, mas só notei no momento da escrita que o caderno das fotos acima e várias das cartas adolescentes completam 20 anos em 2025. Uau. Que coisa incrível. Culpe a minha mania de buscar significado em tudo, mas a cabeça explodiu com essa constatação.
Sim, vou voltar a escrever cartas, não bilhetinhos, mas longas cartas. Já voltei, na verdade. A primeira foi para a melhor de todas as amigas que já passaram pela minha vida, minha irmã, Giovanna. A etapa inicial foi comprar uns papéis pontilhados divinos, que aceitam canetas tinteiro à perfeição. Depois, eu encontrei na caixa que veio com meu tablet uma casa perfeita para o meu mais novo kit de escrita de cartas: além dos papéis perfeitos e de outros papéis pequenos para bilhetes, já guardei ali uma pequena prancheta cor-de-rosa e envelopes de vários tamanhos. Pretendo decorar a caixa com colagens (vou gravar um vídeo do processo para aquelas redes que as pessoas não costumam gostar muito por aqui, mas meu conteúdo nelas é bem legal, juro).
Imagino os amigos e familiares queridos guardando para sempre o coração que sempre coloco no papel, observando a minha letra desenhada com toda a afeição enquanto meus pensamentos se concentravam somente neles e nas memórias que construímos juntos. Se possível, quero enviar uma foto para cada um, pelo menos no primeiro dos envelopes, uma imagem para que eles possam se sentir tocando uma das nossas lembranças fora da tela fria e distante de um celular. Não imaginava que a impressora Instax dos meus sonhos teria um propósito tão bonito assim. As mesmas recordações em papel e tinta que um dia eu ofereci e ganhei, desejo criar novamente e - talvez, quem sabe - receber de volta.
Se você tem meu coração, vai receber uma carta manuscrita com uma polaroid nossa - e outras surpresinhas mais -, em algum momento. Mas mesmo se você só me acompanha por aqui, prometo que receberá cartas na sua caixa de entrada com mais frequência. Não serão de papel e tinta, mas quero tornar a experiência o mais parecida possível, com várias imagens dos cadernos e diários que guardam minha história, minha letra e a minha arte.
Pensar desse jeito é tão mais reconfortante pra mim. Ter em mente que é só uma simples carta, como aquelas que eu escrevia sem parar aos 13 anos. Deve ser por isso que nunca gostei muito do nome “newsletter” e sempre preferi chamar simplesmente de “carta”. Isso faria do meu Substack uma coletânea de cartas? Que lindeza. Esse pensamento torna o ato de escrever para cá muito mais simples e corriqueiro do que a noção limitante de elaborar uma coisa “digna” de sair dos meus diários, de ver a luz do dia. A propósito, quem gosta dessa bobagem de ditar o que é “digno ou não” de ser publicado não sou eu e - certamente - não é você que me lê, mas uma voz insuportável que vira e mexe vem me importunar, também conhecida como síndrome do impostor. Além, é claro, de algumas pessoas chatíssimas e cagadoras de regra que não valem nosso tempo. Não vamos falar delas.
Eu preciso te dizer que essa é uma volta à escrivaninha de duas maneiras diferentes: minha primeira carta no seu e-mail desde outubro e a primeira vez que escrevo um texto longo na mesa de escrever, sim, a própria, a de “carne e osso”, cujo interior - já dizia Hilda Hilst - é humano.
Fiquei afastada dela por três longos meses (sério, eles passaram extremamente devagar). Sofri uma queda idiota na sala escura de casa no início de dezembro: o sofá me deu um carrinho, uma entrada muito desleal, que me arremessou para a frente e deveria ter sido motivo para um juiz sacar o cartão vermelho em algum lugar. O fato de que eu sou um desastre com pernas e vivo tendo acidentes domésticos não vem ao caso, a culpa é do sofá, tá bom? Então tá bom.
A queda gerou uma lesão dolorosa no joelho que me impedia de ficar muito tempo em pé, ou com ele dobrado. Só doía menos quando eu o mantinha esticado no mesmo sofá que fez a falta (veja só) e que acabou virando um escritório improvisado. Eu até colocava o computador no colo para trabalhar, mas a dor no joelho e o desconforto da posição me desconcentravam toda hora.
Você pode imaginar o quanto o fim e o início do ano foram agradáveis para mim. Foram meses em que eu vivia em função da dor, não conseguia dormir direito e chegava a chorar por conta das pontadas agudas que vinham de repente. Tentei de um tudo, fiz incontáveis compressas, tomei injeção e vários medicamentos, mas a coisa só foi melhorar depois de 10 sessões de fisioterapia e da chegada de uma dor pior, a que vem depois da cirurgia de retirada da vesícula.
O procedimento já estava programado, como comentei aqui, e ocorreu de maneira muito mais tranquila do que eu antecipava. Mas olha, doeu bastante nos primeiros dias, especialmente na hora de levantar, sentar e deitar. Sem contar que lá se foram mais noites em claro por ter que dormir de barriga para cima. As desventuras em série continuaram com uma gripe forte que peguei bem na semana do pós-operatório: o nariz entupiu todo, eu não conseguia respirar direito, e aí que não dormia mesmo.
Porém, fico feliz em dizer que as humilhadas foram exaltadas, recebi notícias muito boas e experimentei alegrias desde então. Ainda preciso de alguma ajuda para lavar o cabelo e não posso pegar peso, ou ficar me abaixando sem necessidade até o dia 5 de abril (o que atrasou um pouco o próximo passo de fortalecer o joelho, mas vamos dar tempo ao tempo), quando a cirurgia completará um mês. Mas me sinto bem pela primeira vez em 2025 e isso se deve, em grande parte, à escrivaninha, àquela que ninguém vê como eu vejo - Hilda de novo.
Depois de voltar do meu retorno com a gastro e confirmar que estava me recuperando bem, decidi que já conseguia sair do escritório improvisado no sofá e voltar ao meu lugar preferido. Eu já tinha comprado alguns “porta-coisas”, como porta-lápis-papeizinhos-documentos, que acabaram renovando minha mesa. Dentro das limitações pós-cirurgia, fui dando todo um colorido ao meu recanto, tomando conta dele de novo, enquanto organizava a coleção de papelaria. E eu te juro: foi até emocionante, como voltar para casa e para mim mesma. O joelho ainda reclama, mas muito menos. Coloquei um puff aqui do lado para poder esticá-lo quando isso acontece e tem funcionado com sucesso.

Só sei de uma coisa: eu quero escrever, escrever, escrever e escrever. Em todos os lugares que eu puder. Por incrível que pareça, estou animada até para trabalhar em artigos, na dissertação do mestrado, no romance inacabado que evito olhar desde 2023, por exigir tanto de mim emocionalmente. Ficar todo esse tempo longe do meu cantinho de criatividade e estudos se pareceu com o início do meu intercâmbio na Irlanda, lá em 2015, quando eu me gabava, dizendo a Deus e o mundo que - com certeza - ficaria numa boa sem feijão, até não poder mais comer aqueles grãozinhos marrons suculentos todos os dias e passar a sentir uma falta enorme deles, uma falta quase cruel. Taí, retornar à escrivaninha foi como voltar de um país distante e comer o feijão da tia Inêz pela primeira vez em 12 meses.
Tudo isso é para te dizer também: em outubro e novembro, me desorganizei mesmo, mas nos outros meses, eu passei por essa saga toda aí envolvendo questões de saúde, então acho que estou desculpada pelo desaparecimento, né? Por favor, perdoa o sumiço - e o drama - e não desiste de mim. Bom, como prometi uma experiência o mais parecida possível com a troca de cartas (sabia que você pode me responder nos comentários ou por e-mail mesmo?!), o finalzinho será um pedaço da entrada de 13 de março do meu diário atual.
Direto da escrivaninha (finalmente, mal posso acreditar),
com amor,
tary
Alguns pontinhos para eu não precisar escrever “P.S.” várias vezes
Meu pai faleceu em 2020, mas como ele é uma das pessoas que mais amo no mundo, claro que vai ter carta pra ele também. Quem sabe ela não vem parar aqui pra todo mundo ver o tamanho desse amor? E, sim, eu e a Giovanna nos inspiramos bastante na Chiquinha para chamá-lo de papi, papis e paizinho, aí obviamente chamamos nossa mãe de mami, mamis ou mãezinha, não tinha como ser diferente.
Acredita que o teclado estragou enquanto eu digitava esse texto? Aí precisei terminar no laptop. Às vezes, eu acho que a síndrome do impostor se manifesta de maneiras que até Deus dúvida. Porém, como você está lendo isso agora, ela perdeu a batalha mais uma vez. Assim seja.
Você acha que minha letra mudou dos 13 para os 33? Não vejo tanta diferença. A sua mudou ao longo dos anos?
Um beijo enorme para a Rafa. Ela deu o empurrão que eu precisava em uma conversa sobre o Substack no Instagram: “Quando sentir vontade de escrever um texto lá, só vai”. Pois eu fiz isso. Obrigada, miga ♡
Viu? Se depender de mim, o “miga” vai ficar para a posteridade!
Para terminar, te recomendo fortemente esse vídeo lindo sobre escrever cartas.
Ô amiga, que delícia te ler ♥️ e te encontrar tão forte em cada linha do texto. É uma alegria imensa te ver ativa novamente na escrita. E vem cá, eu quero entrar nessa rodinha das cartas e vou adorar mandar uns rabiscos direto da Holanda pra você 🥰
Amiga eu nem sabia que tinha-se o costume de MIMAR no substack, mas eu estou aqui porque afinal você é especial and bonita and vai me enviar uma carta CHEIROSA. Obrigada por escrever coisas tão lindas, mesmo de longe você me incentiva a ter coragem de voltar a escrever. Quem sabe uma hora??? <3