Tentando conservar momentos e preencher as faltas
A urgência para expressar a crueldade e a beleza de estar aqui
Passamos da metade de outubro e ainda me encontro à deriva, pensando no turbilhão que setembro significou. Perdas, momentos alegres, vulnerabilidades expostas. Como é possível se sentir tão triste e tão feliz em pouquíssimo tempo? O nono mês de 2024 foi uma representação do que é existir, uma boa amostra do que há de belo e terrível em habitar este mundo.
Na mesma semana, completei 33 anos de vida e perdi duas pessoas muito, muito especiais. Neuza, madrinha querida. Beth, diretora de teatro da minha irmã, amiga da família. Elas partiram com o intervalo de menos de 24 horas, depois de passarem por um sofrimento imenso. Ambas estavam hospitalizadas em estado grave e por mais que soubéssemos disso, por mais que o adeus pairasse sobre nossas cabeças, a chegada das notícias, uma atrás da outra, nos abalou profundamente. Uma dor intensa misturada com alívio por elas não estarem mais em agonia, ao mesmo tempo que sentíamos o peito inundar de gratidão por terem passado por nossas vidas.
Por algum motivo, enquanto refletia sobre essas perdas, abri um dos meus livros favoritos, Linha M, de Patti Smith, e me deparei justamente com a seguinte anotação:
Acho que tirar fotos e escrever são tentativas de conservar momentos para revivê-los. Tudo é único, impossível de replicar, e é isso que torna a vida tão preciosa - sua efemeridade. Só o que temos são momentos e a memória deles. Mas só lembrar não basta, por isso escrevemos, inventamos, transformamos em arte, compartilhamos. Não aceitamos, de fato, a finitude - da vida, das pessoas -, então fazemos de tudo para prolongar, preencher as faltas, mas também para honrar esses instantes e quem passou por nós.
Ainda acrescentei um post-it com versos da canção Ritual, de Cazuza:
A vida é bela e cruel, despida
Tão desprevenida e exata
Que um dia acaba
A vida adulta me faz sentir a passagem do tempo no acumular das perdas. De luto em luto, continuo aqui, tentando manusear o inexorável feito uma peça de cerâmica, me esforçando para criar algo a partir de dores e vislumbres de contentamento. Algo como uma entrada de diário, um poema ingênuo que mais parece um sussurro, um desenho, uma colagem, um texto, um romance inacabado. Posso ficar muito tempo calada, submersa no cotidiano sem separar um tempo para transformá-lo em arte, procrastinando para fazer o que nasci para fazer e tanto me apavora, mas quando finalmente uso minhas mãos para reverenciar pessoas e momentos, é como voltar à superfície e respirar de novo.
Recentemente comprei uma impressora da Instax para ilustrar meus diários e me emocionei segurando as polaroids, especialmente as fotos com o meu pai. Olhei para aqueles pequenos retângulos ganhando cores e comecei a chorar. Foi muito diferente de ver aquelas imagens salvas no celular ou postadas no Instagram. Senti que me apoderava delas de verdade. Me impressionei com a sensação de tocar aqueles objetos. Foi parecido com segurar a medalhinha que ele sempre usava e eu reinvindiquei como herança. Agora, além das minhas criações oscilantes, tenho vontade de eternizar momentos em fotografias e escolher algumas para revelar ou transformar em polaroids para colar no diário, costurando um álbum no meu emaranhado de palavras. Engraçado, isso tem tudo a ver com minha anotação no Linha M e eu não havia ligado as duas coisas até começar a escrever.
Minha festa de aniversário estava marcada para o fim daquela semana das perdas e foi obviamente adiada. Com a aproximação da nova data, eu me sentia estranha por celebrar a vida quando há poucos dias a morte tinha se feito tão presente. O aperto no peito permanecia ali, me lembrando a todo momento daquelas ausências, mas tentei fazer as pazes com meus sentimentos e prosseguir, com a ajuda das pessoas que convidei para dividir comigo aquele dia aguardado e planejado com todo o cuidado.
Há tempos eu sonhava com uma festa estilo prom, como nos meus filmes e seriados adolescentes preferidos, mas aquela noite mágica acabou superando a idealização. Tivemos year book para assinaturas, bailinho ao som de Every breath you take, coroação do rei (eleito pela maioria) e da rainha do baile (fiz valer meu direito de aniversariante), além de um ponche delicioso e uma decoração perfeita (oferecimento dos meus amigos que sempre ajudam nos preparativos).
Os convidados realmente entraram na brincadeira e entregaram tudo nos looks, além de terem usado os corsages de papel crepom que eu e minha irmã confeccionamos com a ajuda de uma das maiores invenções da humanidade, a cola quente (se você quiser ver um videozinho de como foi a festa, clica aqui). Antes do parabéns, pedi um “viva” às pessoas que não estavam ali fisicamente, mas eram parte de tantos de nós, incluindo o meu pai. Foi minha primeira festa de aniversário de verdade desde o falecimento dele. Aliás, os três amavam uma festa. Eles vibravam no meu coração.
Me senti bonita e alegre como há muito tempo não me sentia e rodopiei com meu vestido vermelho enquanto recebia tanto afeto que ainda me sinto em estado de encantamento ao relembrar. Tudo isso registrei no meu diário muito antes de sentar para escrever essa carta. Crio colagens, desenho um pouco, brinco com aquarela, mas consigo existir, de fato, na escrita. Ela é minha principal maneira de registrar momentos, buscar significado, tentar preencher faltas, embora tenha consciência do quanto a linguagem é insuficiente.
No mês passado, eu retornei à escrita íntima depois de um longo tempo em silêncio, criei essa newsletter, publiquei textos mais longos até no Instagram. Foi imperativo converter em palavras a crueldade e a beleza de estar aqui e eu nem sabia o quanto essas duas coisas viriam a me atropelar. Essa urgência seguiu costurada em mim e me assombrou a ponto de paralisar, me afastando, paradoxalmente, da escrivaninha. O medo pesa nos ombros, mas a inevitabilidade de uma devoção ao ofício da escrita insiste em ecoar nos ouvidos.
Enquanto digito esse texto, abro novamente meu exemplar de Linha M. Perto do final do livro, Patti Smith escreveu: “Acredito no momento […] Acredito na vida que um dia todos vamos perder”. Eu também. E é por meio da escrita e do ato de amar as pessoas que procuro louvar essas crenças. Estamos sempre nos despedindo, mas de algum modo, a escrita permanece, assim como o amor. O entrelaçamento dessas duas coisas faz parte de quem sou e do modo como desejo viver a minha vida. Que eu consiga dizer sim.
Direto da escrivaninha,
com amor,
Sua letra é muito linda!
Que lindo Tary, me emocionei aqui com seu texto, eu e seu pai temos muito orgulho de você, não deixe de nos presentear com seu dom da escrita. fico muito feliz por você voltar a escrever e como dizia a Clarice Lispector : “ Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece”❤️