Crônica de uma viciada em procurar (e encontrar) significado nas coisas
A escrita apura o nosso olhar para os acasos extraordinários da vida
Não sei como esqueci de contar, no nosso último encontro, justamente a coisa mais importante da minha vida envolvendo o ato de escrever cartas. Muito antes de eu nascer, os meus pais, Celso e Nilcélia, viveram um namoro epistolar. Eles moravam em cidades diferentes e se correspondiam regularmente para conversar e matar a saudade. Uma coisa meio impensável nos dias de hoje, né? Imagina a ansiedade da espera por um novo envelope da pessoa que você ama e de quem sente a maior falta do mundo? No caso deles, deu certo. Tão certo, que eles se casaram, tiveram duas filhas, permaneceram juntos - e extremamente apaixonados - por 31 anos, e a separação só veio com o falecimento do meu pai, em 2020.
Minha mãe guarda, até hoje, uma pasta abarrotada com toda a correspondência deles. Eu me lembro de folhear aquilo sem parar quando era mais nova, fascinada com a cronologia daquela história de amor no estilo “comédia romântica de relacionamento à distância”, com direito à carta de término, carta de arrependimento do tal término, frustração com a impossibilidade de mais encontros pessoalmente, várias declarações bonitas de amor e de saudade. Desbravando aquela pasta, eu passei a shippar os meus próprios pais, mesmo sabendo de antemão o prosseguimento daquela trama.
Para além de ficar encantada por ter um romance epistolar prontinho e entregue de bandeja nas minhas mãos de leitora e curiosa, eu ficava mais e mais fascinada com o gênero carta. Inclusive, me inspirava naquelas cartas para escrever as minhas, que não deixavam de ser bilhetes de amor também, ainda que fossem para amigas e não para um namorado. Assim como sempre adorei coletâneas de cartas e obras literárias narradas através delas, me divertia com a cronologia, em incontáveis folhas almaço, do relacionamento dos meus pais.
Eu morria de rir dos cartões de dia dos namorados breguíssimos e criativos, com direito até a um pop-up de beijo na boca e diversas piadinhas rimadas. Também lembro do quanto eu apanhava para decifrar os garranchos do jovem e romântico Celso (ô, pai, que letrinha feiosa você tinha) e me maravilhava com o capricho da correspondência da Nil adolescente: até a caligrafia dela parecia suspirar.

Fato é que me peguei refletindo sobre ser, de certo modo, uma filha dessas cartas de amor. Não fosse a correspondência de Celso e Nil, no decorrer daqueles anos, talvez nem aqui eu estivesse para te contar essa história. É dessas coisas que estou falando quando digo que a palavra escrita é grande, imensa, capaz de coisas milagrosas. Meus pais construíram um relacionamento lindo por conta das palavras, aí tiveram uma filha obcecada por tudo que as envolve e que, na adolescência, se inspirou nas epístolas deles para escrever as suas. Aí agora, em 2025, do nada, essa filha teve a ideia de retomar o hábito de escrever cartas para as pessoas que ela mais ama e considera, sendo que cartas foram as responsáveis por alicerçar a união daqueles que lhe deram a vida.
Bom, a essa altura do campeonato, você já entendeu o quanto sou viciada em procurar - e encontrar - significado nas coisas. Pois bem, não vai rolar rehab ou um detox para tratar disso. Não adianta, meus olhos se enchem quando reflito a respeito desses acasos extraordinários da vida. E eu só me dei conta por culpa de quem? Delas, as benditas palavras. Escrever é mesmo uma bizarrice só. Começa com uma ideia, um fragmento, uma frase, uma imagem. Aí, de repente, a gente escreveu um texto enorme e repleto de sentimento, apertou o botão para publicar e voilá… Um tempinho depois, acaba se tocando que aquele textão se relaciona com toda a sua existência e te leva a enxergá-la de maneiras que não tinham passado pela sua cabeça até então.
Outra dessas “coincidências” espantosas é o meu nome. Minha mãe o tirou de um romance que estava lendo, comentou com o meu pai, ele adorou e combinou com ela que eles batizariam uma futura filha assim. Cresci sabendo que a personagem do livro se chamava “Tarini” e era uma deusa de muita beleza. Essas eram minhas únicas informações. Dona Nilcélia, infelizmente, esqueceu o nome do livro ao longo do crescimento da sua Taryne. Um belo dia, graças à internet, descobri que a tal deusa existia mesmo: Tarini é um dos nomes de uma deusa hindu, a Mãe Divina da Sabedoria (obcecada pelo tal do sentido, como sou, eu poderia me fixar nessa parte também, mas deixaremos para outra ocasião). O “y” no meio e o “e” no final foram invenção do meu pai. Agradeço a ele, porque, com todo o respeito, acho meu nome bem mais bonito que o da deusa.
Porém, o senhor Celso queria dificultar ainda mais a minha vida na hora de soletrar esse nome peculiar e lutou bastante para colocar um “Th” no início. Graças à Deusa (risos), minha mãe foi contra. Enfim, toda uma digressão para ilustrar o seguinte: meu nome foi tirado de um livro!!! Um romance!!! Eu sou a louca dos livros, até no TCC de Jornalismo eu dei um jeito de enfiar literatura, atendi ao chamado e fui fazer Letras, sou mestranda em Estudos Literários, trabalho com livros, respiro livros, um dos meus maiores sonhos é ter meu nome estampado em um deles. E a primeira coisa que me deu uma identidade neste mundo está conectada a um livro.
Bom, não sei como você se sente, mas eu me sinto ótima, pois acabo de provar um ponto aqui. Não me faça te falar a respeito do nome da minha irmã, que se chama Giovanna por causa da novela O Rei do Gado (era o nome da personagem da Letícia Spiller na primeira fase) e, anos depois, se tornaria uma atriz profissional talentosíssima.
Agora, além de toda a história do meu nome, me dou conta que - não me acuse de exagerar - eu só existo por conta de uma via de comunicação milenar chamada carta, ou epístola, ou missiva, como quiser chamar. Graças a isso, também comecei a pensar no ato de escrever cartas como uma homenagem à história de amor dos meus pais e uma forma de honrar o meu afeto imensurável por eles, ao mesmo tempo em que honro a vida bonita e plena que os dois me deram. Tá vendo? Existe significado nas coisas. E muito. Ninguém vai me convencer do contrário.
O significado também está muito presente nas pequenas coisas. Por esse motivo, eu idealizei uma seção especial para as nossas cartas. Ela recebeu esse nome por conta de uma das minhas frases favoritas da vida, uma frase que me define à perfeição e eu poderia muito bem tatuar na pele.
Tudo o que me comoveu em excesso nos últimos dias
A reflexão principal dessa cartinha, claro. Acho mesmo muito bonito ser filha de um romance epistolar e vou me gabar da lindeza que é isso para todo o sempre. Também foi uma delícia quando minha mãe encontrou a pasta das cartas e quando nós escolhemos as fotos antigas que ilustram essa edição. Eu, ela e Giovanna penamos para entender a letra do meu pai, gargalhamos com os cartões e nos emocionamos com os novos sentidos que as palavras deles ganharam com o tempo.
Junto com as cartas, encontramos o caderno de citações e poesia da minha mãe. Ela anotava tudo o que encontrava de mais romântico para, depois, acrescentar nas cartas para o meu pai. Me diga, como eu seria diferente de uma fissurada por papel, tinta e palavras? Ao tocar no caderno, imediatamente lembrei de quando era pequena e andava para cima e para baixo com ele, copiando todas as frases e poemas nas minhas agendas.
Recebemos boas novas pelas quais estávamos esperando há muito, muito tempo. Nos encontramos em estado de êxtase e gratidão.
Meu primo, de 14 anos, recebeu a notícia da realização de um sonho, se emocionou e comoveu todo mundo ao redor.
Descobri (tarde, eu sei) “A Balada de Tim Bernardes” e meus olhos marejaram em cada um dos muitos plays que já dei lá no Spotify. Que canção sublime. O clipe também. Foi direto para a minha playlist de músicas favoritas da vida. Tim canta sobre um sonho que teve com a avó, já falecida, um sonho que acabou mudando o modo como ele estava encarando a vida naquele momento. Pensei no desejo de viver meus sonhos e no modo como meu pai - também um sonhador - nos apoiava incondicionalmente nessa busca. Que a gente possa sempre encontrar um jeito de ser, aqui mesmo, nesta terra bela e enlouquecedora, tudo aquilo que sonhamos, tudo que nos enche os olhos e faz nossos corações baterem com mais força. Enfim, se eu for detalhar, por completo, as razões pelas quais essa música me comove em excesso quando a escuto, precisarei escrever um texto inteirinho. Por enquanto, vou apenas colar parte da letra aqui. Sério, sinta a delicadeza desses versos junto comigo:
hoje eu me despertei de um sonho lindo
a minha avó sorrindo, ai, quanto tempo faz
vó, que eu não te abraçava
a tua voz na sala, os quadros e os cristais
.
pois dos assuntos sobre bruxaria
a minha avó daria é quem sabia mais
dos mistérios do planeta
e o dom da natureza de se transformar
.
e transformando ela mudou de plano
e um dia todos vamos, porém até lá
vai, meu filho, encontra um jeito
de ser aqui mesmo o que você sonhar
.
e por que não cantar e por que não cantando
la la la la
e por que não cantar e por que não cantando
la la la la
[…]
eu vou voltar, eu vou voltar
eu vou voltar a ser feliz, eu quero ser mais calmo
eu estou cuidando de mim mesmo
.
eu vou sonhar, eu vou sonhar mais uma vez
porque se o sonho acabou
não é um sonho velho que vai acabar comigo
.
eu vou mudar, eu já mudei, estou mudando
a vida é feita para aproveitar
e de algum jeito acho que estou aproveitando
[…]
se por acaso o amor chamar mais uma vez
acho que eu vou, eu quero tentar ir
eu inclusive acho que já estou tentando
Tim Bernardes
A meditação guiada “Pílula Anti Procrastinação”, narrada por Júlia Montfort, que encontrei no aplicativo Aura. Uso esse app todos os dias de manhã e na hora de dormir, mas esse foi um dos áudios com as afirmaçõs mais tocantes para mim, pois padeço (padecia?) desse mal de ficar adiando as coisas. Como sabemos, procrastinação é medo, um medo paralisante. Portanto, eu pretendo ouvir as palavras da Júlia sempre que esse medo bater.
Catar a única amora madura no pomar aqui de casa e saboreá-la, bem devagar, em um dos meus passeios matinais pelo quintal. Foi como se ela estivesse esperando por mim.
A surpresa de ver que as hortênsias do nosso jardim floresceram. Até brinquei com elas (sim, eu falo com plantas e não vou me justificar): “Vocês gostam do Outono, né? Eu também. Também floresço no Outono”. Me sinto muito mais bonita, feliz e produtiva quando as temperaturas começam a cair.
Escrever no diário, na varanda de casa, em um domingo fresquinho e nublado, enquanto sentia a brisa brincando com o meu cabelo, escutava o canto dos passarinhos e observava a beleza de um punhado de sol colorindo de dourado parte da nossa casa. Ah, e eu só percebi tudo isso por sempre começar a entrada do dia me mantendo no presente e escrevendo as percepções de cada um dos meus sentidos. Se você fizer o mesmo, me conta como foi a experiência?
Uma cena na praia, em Beleza Fatal (estamos viciadas na novela aqui em casa), na qual o personagem Lino canta “O que é o que é”, de Gonzaguinha, e observa os filhos correndo para o mar.
Ah, meu Deus, eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor e será
Mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita
Gonzaguinha
Voltei a trabalhar no meu romance, depois de muito tempo. Repeti para mim mesma que a história dele importa e merece ser lida, quando chegar a hora. Aliás, pela primeira vez, eu o imaginei impresso e nas mãos de várias pessoas queridas. Criei quatro parágrafos novos, editei trechos já escritos, pensei como escritora - sou escritora! - e a alegria se instalou no meu peito.
Giovanna foi convidada, como influenciadora, para conhecer uma lanchonete vintage aqui de Campo Grande, a Época Sanduicheria, e eu fui de companhia. Foi tudo maravilhoso. Os pratos são de comer rezando e a decoração é uma viagem no tempo. Para completar, ainda me deixaram mexer em uma máquina de escrever antiga. Foi como entregar um brinquedo desejado para uma criança empolgada.
Estou muito, muito feliz por te escrever mais uma vez. Agradeço demais por sua leitura e companhia. Um beijo e até a próxima carta.
Direto da escrivaninha,
com amor,
tary
P.S. Já que falei do meu nome, sabe por que eu o escrevo com letra minúscula na internet? É que o “T” maiúsculo da fonte convencional me dá a ideia de algo pontudo, sério e distante, enquanto o “t” tem uma curvinha e me parece mais acessível. Se bem que gostei muito do “T” da fonte que escolhi para a “na escrivaninha” na página do Substack. Ele tem dois risquinhos para baixo no topo e um outro risquinho na parte de baixo. Não sei, achei fofo também, até deixei meu nome em maiúsculas nessa cartinha. Sou doida? Muito provavelmente, sim, mas juro que na minha cabeça isso faz todo o sentido.
Ao ler seu texto, me emocionei.
Penso como você, em tanto! Mas tenho a mesma energia caótica que sua irmã, acho que por isso a doidice. Mas para além do que me identifico, pensei nos infinitos significados presentes nessa simples escrita. Como uma fotografia que congela o tempo, você mantém ele em movimento por meio das palavras. E eu também sou fascinada por esse movimento! Continue escrevendo cartas, poesias, histórias, quantas vezes quiser!!
Que texto lindo Tary e ver as minhas fotos com seu pai e nossas cartas de amor foi maravilhoso e emocionante. Tenho certeza que você vai realizar o sonho de ver o seu nome escrito em um livro.