Meu pai passou pela vida feito beija-flor
Ele parecia olhar para tudo com a curiosidade de quem está sempre descobrindo como é espantoso viver
Certo dia, um pequeno beija-flor entrou na nossa casa e ficou preso lá dentro. Minha mãe e eu, muito aflitas com o desespero do passarinho, tentamos de tudo para ajudá-lo a escapar, mas falhamos. Quando meu pai chegou, nós duas corremos, angustiadas, meio chorosas, pedindo a ele para dar um jeito de salvá-lo. Como de costume, ele resmungou um pouco, riu do nosso drama, mas logo pegou um cabo de vassoura, uma sacola plástica, e inventou uma geringonça de resgate.
Com muito mais habilidade do que minha mãe e eu seríamos capazes, meu pai deu inicio à operação de salvamento, que durou umas quatro horas, mas acabou sendo um sucesso. Quando finalmente se viu livre, com muita sede, o beija-flor se apressou para desfrutar do seu prato favorito: as flores vermelhas que ficam na frente da janela do meu quarto. O bichinho voava com ansiedade, ainda meio tonto, comendo e voando, comendo e voando, rodopiando no ar. Parecia celebrar a liberdade, o alívio, a vida. Observando a cena, meu pai chorou de emoção. “Olha, olha como ele está feliz, ele não se aguenta de tanta felicidade!”.
Meu pai, Celso, era um homem muito alto, forte, ex-atleta profissional de futebol, cheio de rabugices, mas dono de um coração enorme e sensível, sempre capaz de se encantar com a vida. Seja com a sensação inexplicável de fazer gol em um estádio lotado, ou de embalar minha mãe nos braços e dançar, livremente, durante as festas na varanda de casa. Ele parecia olhar para tudo com a curiosidade de quem está sempre descobrindo como é espantoso viver. E ele VIVEU, assim mesmo, com letras maiúsculas, garrafais. Por intensos 60 anos, que nos pareceram demasiado curtos, ele viveu feliz, inteiro, aproveitando cada segundo, com muita consciência - e inquietação - quanto à finitude.

Meu pai passou pela vida feito beija-flor: lindo, encantador, breve, inesquecível. Passados quase 5 anos da sua partida, continuo amando falar sobre ele, lembrar das suas rabugices e brincadeiras. Sempre digo coisas como “Se meu pai estivesse aqui, ele diria/faria isso”. Na verdade, para mim, ele está aqui. Eu consigo enxergá-lo em tudo, sempre. Posso ouvir a risada inconfundível, sentir a alegria, ver seus olhos verdes ficando azuis de satisfação quando os irmãos ou os amigos estavam todos reunidos. Ele está em mim, em nós. Está em cada vida que tocou com a sua imensa luz. Aliás, foram muitas vidas. Incontáveis.
Depois da sua morte, várias histórias foram se revelando, coisas bonitas que ele aprontou por aí, levando amor por um mundo que pode ser tão cruel. Quantas pessoas nós desconhecíamos, mas tiveram as trajetórias marcadas por um dia terem encontrado o Celso, o Celsão, que, além de um grande amigo, foi um excelente filho, sobrinho, irmão, primo, tio, esposo, pai.
Mas, é claro, ele também foi um zagueirão dos bons. Sempre tive orgulho de dizer a todo mundo que meu pai era um craque de futebol. Amava sentar com ele no sofá da sala de casa para ver esporte, mesmo entendendo pouca coisa, pois queria estar perto, me conectar àquela paixão. Nos campos, ele fascinou, arrebatou, fez amigos queridos que nos estenderam a mão no momento mais difícil de nossas vidas. Que orgulho. Que orgulho por ele ter lutado para se realizar em uma carreira tão complicada, em uma época muito mais desafiadora para os profissionais do esporte que ele tanto amava. Refletir sobre a jornada do nosso pai sonhador, artista da bola nos pés, faz com que eu e minha irmã, também artistas que optaram por carreiras atribuladas, tenhamos forças para seguir em busca dos nossos sonhos.

Sou tão grata por ter nascido filha dele. Sou grata por tudo que me ensinou, sem nunca deixar de nos ouvir e de se abrir para aprender conosco também. Sou grata pelos inúmeros momentos de felicidade que vivemos juntos, em família, seja abrindo as pistas de dança nas festas, ou rindo na mesa do almoço com as brincadeiras e pegadinhas 5ª série do Celsão. Grata por ele ter amado minha mãe, como um eterno namorado, sem nunca deixar de mimá-la e de demonstrar que ela era seu “amorzinho”, seu grande amor. Sou grata por sempre ter torcido por mim e pela Gio, apoiado nossas escolhas, cuidado de nós. Por sempre ter dado beijo-abraço-carinho, enquanto dizia: “Eu já disse hoje? Já disse que te amo?”. Nós três continuamos dizendo “eu te amo”. Todos os dias. Todas as noites antes de dormir. “Amor eterno”, como ele tanto dizia. Foi a certeza da intensidade desse sentimento o que nos ajudou a continuar, quando a dor parecia insuportável.
Meu pai, o homem mais autêntico de todos, o homem que desprezava a mentira e a falsidade, veio para este mundo justamente em um dia 1º de abril, como este. Hoje, eu gostaria que minhas palavras voassem até ele, como a pequena ave que um dia ele salvou. Gostaria que elas pousassem em sua bochecha, levando a sensação dos milhares de beijos que eu gostaria de dar. A saudade só não supera a gratidão. Que privilégio ter convivido, por 28 anos da minha vida, com um pai incrível como o meu. Um dia, a gente vai se abraçar de novo, bem apertado, e eu vou brincar com aquele cabelo enroladinho mais uma vez. Até lá, vou seguindo meus sonhos e os passos firmes do meu pai.
Como prometi no hospital, em seus últimos dias, eu vou escrever sobre ele. Já estou fazendo isso, na realidade. Quero e preciso transformar esse amor imenso em arte. Esta carta é parte desse desejo e dessa necessidade, mas ela é apenas semente. Os frutos ainda estão por vir.
Direto da escrivaninha,
com amor,
Também perdi meu querido pai a 6 anos de um câncer surpresa. ler seu texto me faz lembrar do amor que eu sinto pelo meu e a dor que é não ter alguém incrível ao nosso lado nos momentos felizes e tristes. Que texto lindo e sensível 🤍
que coisa linda, quanta sensibilidade, tary! sempre amei seus textos, mas sempre que tu escreve sobre teu pai, sinto que teus escritos ficam ainda mais inspirados. ele é teu muso preferido, dá pra notar! <3